sexta-feira, 12 de julho de 2019

Tchau, linda

Acho que a vovó vai partir em breve.

Seu brilho tem se apagado de pouquinho em pouquinho e, minuto após minuto, as coisas mais banais vão ganhando níveis extraordinários de dificuldade: comer, beber, abrir os olhos. Depois de vencer uma pneumonia, aos 94 anos de idade ela lida com aquela que é a batalha mais difícil de todas e, ao mesmo tempo, a qual sempre soubemos que chegaria: o desapego final da vida.

A vovó sempre foi uma mulher muito forte. Ralou pra caramba para cuidar da minha mãe e dos meus três tios, morou em uma casa que sofria com enchentes, lidou com os entraves que envolveram educar um filho deficiente. Ficou viúva bem cedo. Aos 80 ainda pintava com frequência seus lindos panos de prato e fazia bonecas para vender.

Sua casa sempre teve cheiro de pipoca. Ela fazia a melhor massa folhada de banana desse mundo - e sabia disso. Suas paredes continham quadros de Jesus, Iemanjá, ciganas e belas paisagens, todos assinados por ela. Quer dizer, quase todos. Às vezes um deles disputava a atenção com alguma obra-prima de sua irmã, extremamente talentosa para a pintura e também dona de uma luz irresistível.

Vovó tinha muitos livros, especialmente livros espíritas, e se você emprestava algum pra ela, qualquer um, provavelmente o reencontraria com a frase "Pertence à Jacyra" escrita nas primeiras páginas. É, ela era malandra. Nos tempos áureos ela assistia a muitos filmes, colocava e tirava fitas cassetes e até DVDs dos aparelhos. Seus favoritos eram desenhos animados, filmes de fadas, filmes que retratassem Jesus e "A Princesinha", de 1995 e o qual sou capaz de reconhecer só pela música de tantas vezes que assisti. Aquela música e aquela história marcaram a minha infância.

Algumas das minhas lembranças mais felizes envolvem a casa dela. Eu, minha irmã e minhas primas costumávamos nos sentar no muro e conversar por horas a fio aos finais de semana. Vira e mexe a dona Jacyra vinha até a porta, de avental, perguntar se a gente não queria comer alguma coisa ou tomar Guaraná - todos os refrigerantes eram Guaraná para ela, não importasse o rótulo.

Os anos se passaram e a cabeça da vovó deixou de funcionar como antes. Foi parando de cozinhar aos poucos, se esquecia para que servia o shampoo, parou de entender a televisão. Continuou comunicativa por muito tempo, mas as frases que dizia começaram a ficar desconexas e, por fim, perderam de vez o sentido. Parou de usar o telefone. De repente os nomes se embaralhavam como nunca, ficou difícil reter as coisas na memória. Sofreu quando teve de deixar a própria casa, a casa onde vivera por tantos anos, mas o tempo também se encarregou de fazer com que ela se esquecesse de que um dia essa casa existira.

Por diversas vezes ela ficou comigo e com os meus pais. Quando eu ia trabalhar de manhã e dizia "até de noite, vó", ela respondia "se Deus quiser" e sempre terminava com "tchau, linda". Ao chegar em casa à noite, ela abria os braços e o melhor dos sorrisos pra mim, certa de que receberia um abraço daqueles. Estava sempre quentinha e confortável no sofá. Gargalhava quando recebia cócegas. Segurava minhas mãos com força e as apertava em seu colo ou as balançava feliz.

Uma das histórias de que ela mais gostava era a de quando eu era pequenininha: eu queria balançar em um cavalinho e ela estava tomando conta de mim. Pedi pra ela balançar mais rápido, e ela me atendeu, mas é claro que caí no chão. Ela, então, pediu pra eu não contar pra minha mãe, mas eu chamei por ela e contei mesmo assim. Aos berros. Não tinha uma vez em que ela não ria se lembrando disso.

A vovó foi uma mulher tão boa. Nunca teve uma vida tranquila em termos de dinheiro e, mesmo assim, sempre encontrava uma maneira de ajudar os outros. Sua fé era inabalável, tanto que muitas vezes ela apontou para o céu e disse estar vendo carruagens se aproximarem com entidades inteiras vestindo branco. Ela adorava santos, anjos, fadas, orações, passes, água energizada. Meus tios disseram que, no hospital, ela afirmou que tinham pessoas chamando por ela. E deviam ter mesmo.

A vovó ainda não se foi, mas eu já estou escrevendo no passado, mesmo sem ter percebido. Minha mãe me disse há algumas horas que estava com um mau pressentimento. Meu coração se encolheu um pouquinho. Passei o final de semana rezando por ela. Chorei no metrô e até no trabalho. Acho que meu coração também sabe que falta muito pouco agora. A respiração vai cessar, os batimentos cardíacos também. A dor vai embora, levando pra longe o Alzheimer ou o que quer que seja que cismou em aparecer nos últimos anos. E a vovó vai colher os frutos dessa vida incrível que viveu aqui lá do outro lado. O lado para onde ela sempre soube que iria voltar.

Vó, acho que hoje a gente não vai se ver à noite. Aquele último abraço vai ficar para depois. Eu me lembro da sua voz e do seu cheiro. E vou seguir assim, eu prometo. Até a Lua parece mais brilhante pra você hoje.

Tchau, linda.

[Texto escrito em 19/06/2019, entre lágrimas e lembranças]