segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Iracema


Há algumas semanas peguei emprestado da casa da minha avó o clássico "Memórias póstumas de Brás Cubas". Esse sempre foi um exemplo de livro que acabei empurrando várias vezes para o futuro simplesmente porque sim. Logo na primeira página, a icônica frase: Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas. Sorri.

Como se meus dedos e minha atenção estivessem sendo conduzidos por uma sinalização invisível, encontrei fácil o livro de Machado de Assis, mesmo tendo à minha frente uma estante abarrotada de obras-primas. Fiquei um tempo parada depois, de frente para aquele armário que tantas vezes me serviu de biblioteca. Passei os dedos pelas lombadas de livros que minha avó me ensinou a amar: "Rebecca" (Daphne du Maurier), "O Egípcio" (Mika Waltari), "Morte nas Nuvens" (Agatha Christie), "O Dossiê Pelicano" (John Grisham). Esses livros estavam todos ali, meio empoeirados, é verdade, mas bravamente disputando espaço com outras histórias e uma torrente de lembranças.

Parecia que a qualquer momento eu ouviria a voz da minha avó ou a veria chegando apressada, naquela agitação de mãos e passos que lhe era tão característica. Ela poderia muito bem ter sido pega de surpresa pela minha presença e interrompido uma sessão de palavras-cruzadas só pra ir lá espiar o que eu estava fazendo. Ou melhor: podia ter se assustado comigo ali, parada no corredor da sala, de frente para um armário, depois de voltar de uma escapulida rápida - e proibida - à padaria, à farmácia ou a qualquer outro lugar - ela costumava fazer isso para mostrar que ainda era independente, eu acho.

Apesar de eu ter me detido por um instante, talvez tenha até prendido a respiração sem perceber, ninguém chegou. Ninguém falou. A casa estava vazia, escura, silenciosa. E isso não foi algo específico daquele dia, não. Desde outubro do ano passado não mora mais ninguém ali. Minha avó se mudou para uma clínica por problemas de saúde e deixou para trás uma casa que é e sempre vai ser a cara dela. A casa dela. Construída pelo meu avô, o marido dela. A casa onde brinquei com a minha irmã, a casa onde tantas vezes comemos pizza aos sábados, a casa que por muito tempo tinha bombons Ouro Branco guardados no armário da cozinha. A casa, inclusive, onde li o primeiro livro da minha vida: dele não me lembro quase nada, exceto que uma das personagens era uma sereia, mas tenho a forte impressão de ver a mim mesma, uns 22 anos atrás, sentada no chão, de costas pra parede, enlevada por ter entre as minhas mãozinhas algo capaz de me entreter tanto.

Lembro de um dia ter deixado a minha mamadeira sobre a mesinha da sala e de ter chorado depois de o meu avô ter dito brincando que tinha tomado parte do meu leite. Lembro de abrir o guarda-roupa da minha avó, vestir xales e exibir colares e pulseiras que não eram meus, me olhar no espelho e achar aquilo a melhor coisa do mundo. Lembro dos almoços durante a infância com macarrão ao alho e óleo, folhas de alface gigantes e peito de frango (sim, para os céticos, houve um momento da vida em que eu comia frango).

Minha avó tinha o cabelo tão fininho, dourado e liso que um dia eu disse que ela tinha o cabelo igual ao da Barbie e ela riu. Tinha os olhos verdes e a pele tão branquinha que acabou ganhando a companhia de inúmeras pintas. Ela era danada a véinha. Assistia a Friends de vez em quando - e falava "Xendler", do que eu sempre achei muita graça -, era fã de séries policiais, sabia falar francês. Superviajada. Por muito tempo ela e meu avô se entregaram às estradas e conheceram esse nosso Brasilzão. Só o Norte do país eles não visitaram. Um dia alguém perguntou que tipo de livro ela gostava de ler. Ela nem hesitou: "um bom crime". Ninguém espera isso de uma senhorinha.

Minha avó se chamava Iracema. Iracema Apparecida, com dois pês. Ela pagou o meu curso de inglês todinho, e o da minha irmã também. Comprou um zilhão de roupinhas pra minha Barbie. Patrocinou a nossa ida à autoescola pra tirar a habilitação. Pera aí, essas coisas não aconteceram nessa ordem, acho importante destacar.

Um dia entramos na Siciliano e encontramos um caldeirão cheio de livros. Peguei um, folheei, mas não entendi bem o que era aquilo e por que estava com tanto destaque. Confesso que não dei muita bola. Mas minha avó virou pra mim e disse "ouvi dizer que as crianças estão fazendo fila na Inglaterra por isso". Ela foi ao caixa, pagou e me entregou a sacola. Aos 10 anos, meio que sem expectativas, conheci Harry Potter. "Érri Potter", ela diria. Depois disso ganhei quase a coleção inteira de presente dela - o único que veio de outra fonte foi o quinto livro, "Harry Potter e a Ordem da Fênix". Ela até tentou acompanhar a saga, mas se cansou no segundo ou no terceiro, eu acho. Acredito que os crimes cometidos no mundo mágico eram água com açúcar demais pra ela.

Avós têm a opinião mais suspeita do mundo. Minha avó me achava tão, tão linda. Aliás, não só eu; a minha irmã também. Ela dizia isso sempre: pra nós, para os meus pais, para vizinhos e até para semidesconhecidos. "Oi, Fulano, essa é a minha neta. Ela não é linda?". Isso aconteceu de verdade. Quando o assunto é bisneto, então, Virgem Maria. Minha avó era louca pelo meu sobrinho. 

Às vezes, de manhã, quando eu estava saindo para o trabalho, ela saía ao portão, de camisola e alguma blusa de lã por cima, para me dar tchau. Na maioria das vezes forçava o rosto contra o portão pra me dar um beijinho. À noite ela me perguntava "Brunella, tá com fome?". Invariavelmente ouvia um "sim" e, meio sacana, dizia "eu já jantei, graças a Deus". Quase sempre me esperava chegar das aulas de yoga pra ir dormir. Ficava encostadinha na janela, do lado de dentro da casa, olhando pra mim na garagem, aqueles olhos verdes irradiando amor.

Eu nunca chamei a minha avó de "vó". Ela era a Cema. Simples assim. E, apesar de nos últimos meses eu a ter visto pouco - culpa minha, mas é que era dolorido demais ir pra clínica e vê-la se apagando aos pouquinhos -, ela levantava os olhos pra mim e ensaiava um sorriso. Acho que não é tudo o que a memória tem capacidade de esquecer.

No último dia 11 de julho acordei de madrugada com uma movimentação estranha em casa. Minha mãe me olhou e disse três palavras: "a Cema. Foi". Por algum motivo muito estranho só consegui chorar horas depois. Foi estranho também vê-la depois, imóvel, vestindo uma blusa que ela adorava. O cabelo de Barbie todo branquinho. Segurei sua mão. Tão gelada quanto eu imaginava que estaria.

Minha avó não estava bem de saúde e passou dias e dias e mais dias no hospital, se recuperando não sei bem do que, pra ser sincera. Depois que meu avô morreu, em 2005, ela começou a reclamar da solidão. Não sei dizer se ela era realmente feliz. Mas ela dava boas gargalhadas todas as vezes em que eu contava uma piada quando era criança. Fico feliz por saber que ela me viu crescer e gostou da pessoa em que eu me transformei. Ela me entregava cartões em todo aniversário e, sempre que podia, vinha correndo me dar um abraço. "Deixa eu dar um abraço na minha querida", ela dizia. Justo ela, que não era tão apegada assim a abraços. Que sorte a minha.

Ao olhar pra casa dela ainda é difícil de acreditar. Demorei a escrever algo pra ela porque parte de mim se recusa a fechar o portão e a dar tchau. Somos vizinhas, poxa. Sempre fomos. Me consolo no fato de que ela está em outra casa agora. Uma casa melhor do que aquela que meu avô construiu. Espero que, a essa altura, ela já tenha encontrado seus pais, seu irmão, seu marido, sua amiga Norma, tanta gente que partiu primeiro.

Obrigada por ser e por ter sido a minha avó. Obrigada por fazer tanta falta.

Obrigada pelo seu nome ser o título de um dos meus livros preferidos do José de Alencar. Se ele soubesse como você era branquinha, tenho certeza que teria descrito a virgem dos lábios de mel de outra maneira.

Ah, e o mais importante de tudo: feliz aniversário. Não é porque você não está aqui neste 10 de agosto, fora do alcance dos olhos e das mãos, que a gente não precisa comemorar os seus 89 anos, né? 💛